Mundial de Surfe é palco da luta de brasileiros contra o preconceito

Um conflito recente entre o surfista brasileiro Michael Rodrigues, 24 anos, e o surfista havaiano Tanner Hendrickson, 26 anos, trouxe a tona uma antiga discussão que rodeia o contexto do esporte: o localismo e o preconceito contra os brasileiros. O incidente ocorreu em Oahu, no Havaí, durante uma etapa do Circuito Mundial de Surfe, no início de dezembro

Momentos depois do ocorrido, Michael se pronunciou nas redes sociais e informou sua situação e alguns detalhes do episódio:

A WSL logo se pronunciou e suspendeu provisoriamente as atividades do atleta havaiano na competição.

Apesar de ser natural da ilha havaiana de Maui, e não Oahu, onde ocorreu a briga, o ato de Hendrickson tem sido relacionado aos modos localistas, muito recorrentes na história do surfe. Em outras palavras, é como se Hendrickson só tivesse partido para a briga porque estava em “seu território”, ou seja, teria respaldo dos outros atletas, que, por sua vez, também não vão com a cara dos brasileiros. Muitos até acreditavam que o havaiano não seria punido.

Localismo

Diversos acontecimentos no mundo do surfe têm a marca do que chamam de localismo – basicamente definido como as práticas tomadas para proteger, demarcar a sua localidade e impor respeito. Os brasileiros têm sofrido muito com a filosofia localista desde que começaram a conviver com surfistas de outras regiões, principalmente quando visitam outros picos.

Os primeiros traços de localismo que se têm notícia são dos havaianos Da Hui, ou Black Trunks. O grupo, que era formado por nativos, foi fundado em 1976 e enfrentava o desrespeito de surfistas visitantes diante dos locais, apelando para a violência física para afastar os estrangeiros. Criou-se até uma nomenclatura para denominar os “intrusos”, são chamados de “haole”, palavra havaiana que tem como significado etimológico “aquele que não respira” e refere-se ao homem branco, estrangeiro. Na temporada de inverno, a região havaiana North Shore recebe uma grande quantidade de estrangeiros e então, até hoje, é possível ver o localismo entrar em ação. Se as “regras de etiqueta” não forem cumpridas, o surfista poderá sofrer com as consequências.

Repulsa aos brasileiros

Juntamente aos australianos e aos estadunidenses, os havaianos foram precursores não apenas do surfe, mas também das viagens em busca de ondas perfeitas, a partir dos anos 50. Grandes picos só são surfados atualmente graças às expedições daquela época. O esporte logo se popularizou no Brasil, que oferece um litoral imenso e abriga uma grande diversidade de picos. Com o tempo, os brasileiros passaram a desbravar as ondas mundo afora e entrar em contato com outros costumes. A partir de então, o choque de cultura provocou o início das desavenças entre os brasileiros e o surfistas do resto do mundo, e o brasileiro se tornou “the fucking brazzo”.

Um dos grandes culpados da péssima impressão deixada pelos nossos surfistas é o famoso “jeitinho brasileiro”. Características como comemoração intensa, expansividade no modo de se comunicar e até mesmo ter como língua maternal o português, o que dificulta a comunicação com os estrangeiros, são fatores que contribuem para isso. Os gringos, mais reservados, nem sempre souberam entender essa maneira de ser como algo natural e, muitas vezes, interpretaram como folga e tiração de sarro. Para eles, os brasileiros são um povo barulhento, mal educado e que tenta tirar vantagem em tudo. Gritar em comemoração ao pegar uma boa onda foi, por muito tempo, considerado algo como uma afronta.

Alguns surfistas brasileiros como Neco Padaratz, Almir, Picuruta Salazar, Paulo Moura e Peterson Rosa, por exemplo, já foram vitimas de práticas localistas. Dizem até que houve uma época em que eram oferecidos US$100 pra quem impedisse um brasileiro de ficar no mar. Além disso, o bi-campeão mundial Gabriel Medina já teve que sair da água por causa disso, protagonizando mais um exemplo de como o localismo pode prejudicar o desempenho dos atletas da elite. Adriano de Souza, o “Mineirinho”, já precisou ser escoltado na praia de Oahu. O campeão brasileiro na categoria Pro Júnior, Theo Fresia, contou em entrevista ao Torcedores sobre um episódio em Jeffreys Bay, na África do Sul “A gente estava comentando as ondas uns dos outros e um cara mandou parar de falar português, porque essa não era a língua do pico”.

É inegável, porém, que a veloz ascensão verde e amarela, a famosa “Brazilian Storm” (em português, “tempestade brasileira) em um contexto tradicionalmente dominado por americanos e australianos também é um fator intensificador da rixa contra os brazucas. Até 2014, ano no qual Gabriel Medina ganhou seu primeiro título mundial, somente dois atletas haviam conseguido superar o domínio australiano, americano e havaiano, o sul-africano Shaun Tomson, em 1977, e o inglês, criado na África do Sul, Martin Potter, em 1989. O desempenho brasileiro está tão à tona que, na temporada de 2018, o Brasil foi o grande nome do circuito. Levou nove das 11 etapas disputadas e tem 3 atletas entre os 5 melhores colocados no ranking mundial. Dessa forma, outro fator importante que diferencia os brasileiros: eles são um time. É como se não fossem atletas isolados, que tem o surfe como estilo de vida. Para os brasileiros, surfe é mais do que isso – é trabalho, pra colocar comida na mesa e sustentar a família. É essa raça e essa gana que, muitas vezes, são vistas como arrogância pelos estrangeiros.

O Brasil conquistou três títulos do circuito mundial nos últimos cinco anos, além de conseguir ótimos resultados em campeonatos como Mundial Pró-Junior, que teve o brasileiro Mateus Herdy como campeão de 2018, WQS, Rookie of The Year. Quando se fala nos surfistas apontados como futuros dominadores do surf mundial, grande parte é brasileira.

Fazer por merecer

A má fama brasileira, porém, foi justificada em alguns episódios. A ambição e a vontade de vencer, algumas vezes, superaram o espirito esportivo e protagonizaram cenas nada orgulháveis. A rabeada de Gabriel Medina em Jordy Smith na etapa Fiji Pro em 2016, por exemplo, é uma daquelas coisas que dificultam a defesa da galera verde e amarela. Veja o vídeo:

Além disso, a torcida brasileira, que sempre acompanha os atletas e destoam das outras torcidas pela animação e perseverança, por vezes exagera na intensidade e vaia atletas adversários, principalmente nas etapas realizadas nas praias do Brasil. Grandes nomes como Mick Fanning e Joel Parkinson já foram vaiados ao disputarem contra brasileiros.

Luz no fim do túnel

Para o ex-competidor e locutor da WSL na língua portuguesa, Klaus Kaiser, o localismo tende a diminuir cada vez mais no circuito mundial. “O que os gringos não gostam (aliás, ninguém gosta) é de gente folgada”, ele afirma, em entrevista ao Torcedores. “Claro que sentimos algumas vezes uma ponta de ciúmes pelo atual sucesso dos brasileiros, mas nada que provoque ‘ira’ ou ‘ódio’ de quem quer que seja”. Para ele, o domínio brasileiro no cenário atual do esporte já é uma grande prova de que essa briga é cada vez menor e de que os brasileiros são sim muito bem vistos por onde passam.

Esse otimismo é compartilhado pelos atletas. O surfista competidor do QS Pedro Nogueira, afirma que, na chamada “segunda divisão”, a galera é mais amiga. “Pode ser porque tem menos mídia envolvida”, ele sugere, dizendo ainda que a garotada que está ingressando no mundo profissional e caminhando para o circuito mundial já tem uma cabeça diferente e lida cada vez menos com os preconceitos em relação ao Brasil. Pedro reforça, ainda, que muitas vezes há um vitimismo. “A galera dá uma passada às vezes”, ele diz.

A recente disputa pelo topo da elite entre o havaiano John John Florence e o brasileiro Gabriel Medina também tem reacendido a questão, mais especialmente Brasil x Havaí. Sem competir as últimas etapas de 2018 por causa de uma lesão, Florence tem tudo para voltar bem em 2019 e impulsionar essa briga de gigantes. Espera-se, somente, que o ringue desse conflito seja um espetáculo de boas ondas.

Acesse e leia nossos “Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol” 201420152016, e 2017 com os casos de preconceito e discriminação no esporte brasileiro aqui.

Fonte: Torcedores

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