Aira Bonfim, a pesquisadora que resgata a verdadeira história do futebol no Brasil

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Fica praticamente na curva de uma rua. De longe não dá para ver direito, parece que não há nada ali, um ponto meio perdido no mapa. Mas é só impressão mesmo. Sem grandes indicações, placas e holofotes, há uma guarita e uma cancela simples, mas se passa a pé com tranquilidade. À frente, um grande terreno se abre. Cheio de vento, mato, grama e terra. São seis campos de futebol praticamente na beira da marginal Tietê, na Casa Verde. Há ainda as pequenas e simples sedes de clubes da várzea da cidade instaladas ali. Foi nesse local que a pesquisadora Aira Bonfim, 34 anos, escolheu conversar com a reportagem do HuffPost Brasil. “É um espaço que tem história e dividir parte dessa história também é o meu trabalho, não só como historiadora, mas tem uma militância de defender o espaço de memória das pessoas, das agremiações, dos espaços de lazer e sociabilidade, de arte, de samba”. Defender um espaço de futebol.

Minha vida foi conhecer e registrar essas histórias.

Nesse complexo de campos, além de diversas partidas que ocorrem principalmente aos fins de semana – a maioria durante o dia já que a falta de iluminação impossibilita as partidas noite adentro – ocorrem outros eventos e festas. Tudo em torno dos campos e dessa que é mais do que uma modalidade esportiva, mas sim uma parte da cultura do brasileiro: o futebol. E foi a isso, essas histórias e lugares como esse que Aira se dedicou nos últimos sete anos. Nesse período, ela ajudou a implementar o Centro de Referência do Futebol Brasileiro dentro do Museu do Futebol. “Minha vida foi conhecer e registrar essas histórias e levar para o museu, que é um espaço público, que legitima a memória das pessoas, dos espaços e acho isso muito potente. A gente nasce em um lugar que todos dizem ser o país do futebol, mas não entendemos direito que futebol é esse que estamos falando”.

Ela deixa claro. Estamos falando de vários. Inclusive desse do terrão, da várzea, que rola ali no Campo de Marte, bem próximo ao centro da cidade. “Tem gente que fala que acabaram os campos de futebol na cidade e estamos aqui, pertinho do centro, em um complexo com seis campos. Acho que é importante pensar que nem tudo é tão óbvio, inclusive a história do futebol, porque a gente sempre pensa nesse futebol que passa na televisão, dos grandes times, mas acho que aqui é um espaço de resistência, de reivindicação de espaço físico e da memória”. E essa mistura toda pode ser uma grande definição de futebol, para muito além de uma partida apenas.

É importante pensar que nem tudo é tão óbvio, inclusive a história do futebol.

É o que Aira foi aprendendo ao longo dos anos, quando entrou nessa área. “Hoje a gente já fala em um termo novo que é ‘futebóis’. Pode ser o varzeano, o feminino, o futebol indígena, o kilombola, o futebol de praia, várias formas de pensar e praticar esse futebol, bandeiras de luta, de resistência, de formas de interagir com a cidade e isso ampliou meu conhecimento do que é a relação das pessoas com o esporte, minha relação com a memória e entender meu lugar no mundo também”.

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Formada em artes visuais, Aira nunca teve muita pretensão de se tornar artista plástica. O que a encantava era a ideia de se aproximar de museus, entender os bastidores desse universo e acabou atuando anos como professora de artes em bairros da periferia de São Paulo. Nesse período, Aira, nascida em Campinas, interior de São Paulo, pode conhecer a cidade de outra forma e ir para bairros bem distantes do centro, coisa que adorava. Após alguns anos, apareceu essa oportunidade de atuar no centro de referência no museu e encarou a mudança, em partes, de área. O tema era outro e não dava mais aulas. Mas não deixou de circular pela cidade e de trocar informações. “Futebol na minha vida era experiência de escola, de jogar, não era de torcer, não tenho grandes conhecimentos, não sei escalação de time, não sou esse estereótipo de pesquisador [risos]. A gente levava as informações desses campos para o museu, uma boa foto, uma boa conversa, filmava e isso hoje consiste o acervo do Museu do Futebol”.

A gente naturaliza hoje que o futebol não é para mulher, acho que tem a ver com esse histórico.

Recentemente Aira deixou o centro de referência e se dedica a seu mestrado em que pesquisa o futebol feminino na década de 30. Muito do que motiva esse trabalho surgiu nesses anos todos de pesquisa. Ela conta que a ficha sobre a pouca atenção a esse tipo de futebol foi caindo com o passar do tempo. Ainda no museu, ela lembra que precisavam de uma foto da seleção feminina posada em cada um dos principais campeonatos: Copa do Mundo, Pan-americano e Olimpíadas. “Não tinha imagem! Copa do Mundo, a primeira foi 91, então você pensa que é óbvio que vai ter. E não tinha”. Aos poucos, o espaço para essa história foi crescendo ali dentro. “A memória não está dada. A gente pegava a caixa de recorte de jornal que a mãe de alguém tinha na casa dela, digitalizava e vira um acervo público que serve de pesquisa. Criamos essa base”.

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Assim, com registro, a história ganha materialidade e é legitimada. E Aira destaca que muitas outras histórias e personagens merecem ser reconhecidas dessa forma. “Vendo a história, a gente ainda legitima muitos personagens masculinos, eles é que são dignos de serem protagonistas, terem seus registros, seus estudos. Estou indo contar uma história que já estava lá nas mesmas fontes de outros pesquisadores”. Para ela, em parte, a dificuldade de dar espaço para alguns temas ainda é algo cultural e apesar dos avanços, há trabalho pela frente. “Em 41 tem um decreto do Estado Novo em que a gente é proibida de jogar, o futebol é colocado como prática inadequada para mulheres e isso permanece por anos, então se a gente naturaliza hoje que o futebol não é para mulher, acho que tem a ver com esse histórico”.

Estou indo contar uma história [do futebol feminino] que já estava lá nas mesmas fontes de outros pesquisadores.

É para isso que ela tem olhado cada vez mais. Um histórico que precisa ser conhecido. E que pode estar em vários lugares. Como nesse campo de várzea, que é só um dos guardiões dessas memórias que constroem o futebol e tudo que ele engloba. A própria Aira é, também, uma guardiã de um pedacinho disso – como somos todos nós, talvez. Ela não pisou pela primeira vez em um campo de terra como esse para pesquisar. A coisa começou antes disso. Ela ia, quando criança, acompanhar os jogos do avô, goleiro de várzea. “Meu varzeano preferido era meu avô. Foi o primeiro que me levou em um lugar assim. Tenho essa recordação de ir com ele, não tanto de acompanhar o jogo tecnicamente, mas tinha familiaridades com lugares assim, ficava brincando. Depois ia na lanchonete, pegava uma garrafa de refrigerante e uma salsicha empanada e vejo da relação dele com o futebol que ele era um legítimo ator do futebol. Guardava as coisas, as medalhas, os troféus…”

Todo um ritual e hábitos que compõe o futebol. E para fazer parte e conhecer essa história não é preciso, necessariamente, jogar. Mas Aira sabe, cada vez mais, que é preciso uma coisa: ir a campo.

Seja ele qual for.

Acesse e leia nossos “Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol” 201420152016, e 2017 com os casos de preconceito e discriminação no esporte brasileiro aqui

Fonte: Huffpost

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