Piloto negro supera barreiras e faz história nos EUA com vice-campeonato

Você conhece algum piloto negro – que não seja Lewis Hamilton? Pergunta difícil para a grande maioria das pessoas considerando que, em todo o mundo, temos apenas três automobilistas em categorias “top”. Mas há resistência no automobilismo, e um desses nomes no front é o de Myles Rowe, vice-campeão de 2022 da USF2000 (categoria de base dos Estados Unidos) e primeiro preto a vencer uma corrida num campeonato de formação no país.

Myles Rowe celebra vitória na etapa de Mid Ohio de 2022 na USF2000,categoria de base da Fórmula Indy nos Estados Unidos — Foto: Divulgação

Rowe, de 22 anos, começou a carreira aos 12 anos de idade e estreou nos monopostos em 2017, aos 16 anos. Ele ainda conquistou um título no ano seguinte; porém, a falta de recursos pesou e o jovem de Atlanta, na Geórgia, parou de correr, por quatro anos.

– Depois de dois anos eu não conseguia nem assistir as corridas. Isso me deixou triste porque cada vez que eu assistia eu queria estar no carro – recorda o piloto.

Um projeto de diversidade lançado pela Fórmula Indy após o desabafo de Lewis Hamilton em resposta ao homicídio do afroamericano George Floyd encontrou Rowe, em 2020. Teve início, ali, uma trajetória que o levaria a se tornar o segundo piloto negro no mundo depois do próprio Hamilton (na GP2 Series, em 2005) a brigar por um título de base em monopostos.

Myles Rowe posa com fãs no Indianapolis Motor Speedway, nos EUA, em 2021 — Foto: Grace Hollars/IndyStar

– Em 2017 fiz algumas corridas na Lucas Oil Formula Car Race Series e ganhamos metade delas. Fui realmente abençoado porque eu não pude disputar a temporada inteira, mas essa foi basicamente uma grande razão para eu ter voltado a correr, porque não conheço muitos outros pilotos negros que têm um campeonato nas categorias de base no seu currículo e isso foi incrível – recordou o jovem.

Rowe foi aprovado em testes em 2020 e passaria a integrar a Force Indy, equipe composta em sua maioria por profissionais negros – incluindo o chefe Rod Reid, empresário no esporte a motor. Com suporte do presidente da Indy, Roger Penske, o time ingressou na USF2000 – primeiro de três degraus da base da Fórmula Indy.

           Diversidade custa caro

Rowe conquistaria ainda em sua temporada de estreia uma vitória, em Nova Jersey, tornando-se o primeiro automobilista negro a vencer na base dos EUA. Porém, a Force Indy migrou para a IndyLights e Rowe precisaria de dinheiro para continuar competindo. Ele chegou a abrir uma vaquinha online com alvo de 450 mil dólares (cerca de R$ 2,3 milhões) e arrecadou metade, o suficiente para disputar três rodadas no campeonato de 2022.

Embora o automobilismo americano seja mais “barato”, o esporte ainda exige muito mais do que a população negra, em geral, pode arcar. A situação se repete em outros países marcados pela escravidão e séculos de racismo sistêmico: incluindo o Reino Unido de Lewis Hamilton e o Brasil, que teve o carioca e tricampeão brasileiro de Endurance Lucas Molo como primeiro piloto negro, estreando na Stock Light (atual Stock Series) em 2006.

Uma estimativa de 2020 mira em 8 milhões de euros, ou R$ 40 milhões, o mínimo necessário para levar uma criança do kart até a base da F1, valores muito distantes das estatísticas financeiras de negros nestes países.

Dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam que a população negra do Brasil representava, em 2020, 60,3% das pessoas desocupadas. Além disso, quase 9 milhões de brasileiros perderam o emprego ou deixaram de procurar uma ocupação; desses, 6,4 milhões eram negros. Ainda: em 2021, os negros recebiam em média, 57,7% da renda da população branca: cerca de 1500 contra 3500 reais mensais.

Lucas Molo é tricampeão brasileiro de Endurance e disputou a Stock Light em 2006 e 2007 — Foto: Motorsport Images

– A única razão de eu ainda estar aqui é porque fui abençoado por ter alguém para me notar, para me patrocinar. Da maneira como a indústria conduz as coisas, é difícil para grupos minoritários se envolverem. As pessoas no topo, os principais parceiros da categoria, precisam encontrar uma maneira de evitar que você necessite de capital financeiro para se estabelecer no automobilismo. Não devem ser os pilotos a precisar encontrar patrocinadores para pilotar. As equipes é que precisam encontrar patrocinadores para competir – sugeriu Myles Rowe.

Agora titular da Pasbt Racing, Rowe bateu na corrida de estreia em St. Petesburg, mas deu a volta por cima e ganhou a corrida seguinte. Ele voltaria a vencer no Alabama e subir ao pódio na rodada tripla em Indianápolis, quando seu dinheiro acabou.

Penske, no entanto, voltou a intervir e quitou o restante da temporada do piloto do carro 22, que voltaria a vencer mais três vezes para entrar na briga pelo título com Michael D’Orlando, campeão de 2022.

           Inspiração em Lewis Hamilton e pioneirismo

Rowe é um dos três negros em todo o mundo que estão na base de campeonatos de fórmula (além dele, há Ernie Francis Jr na IndyLights e Ugo Ugochuwku na F4 britânica), um talento do presente e futuro do automobilismo que quase se perdeu por fatores socioeconômicos históricos que atingem outros pilotos:

– É algo que eu tento não subestimar e só aprecio. Não há muitos pilotos negros correndo, e você tem muita sorte se for um deles Nós não tivemos tantas oportunidades financeiras por causa das coisas que aconteceram no passado e que afetam as coisas que podemos fazer agora. Portanto, sou super abençoado por estar nesta posição, e espero que, enquanto eu estiver aqui, ajude a abrir mais portas para pessoas como eu, porque isso é o que realmente importa.

Myles Rowe celebra vitória na etapa de Nova Jersey da USF 2000, em 2021 — Foto: Divulgação

Rowe, que também está se graduando na New York’s Pace University, concilia a paixão por fotografia e cinema com o trabalho nas pistas, bem como o interesse por campeonatos de ralí e categorias sustentáveis – como a Fórmula E e a Extreme E, de carros elétricos.

Na lista de ídolos dentro do automobilismo, elencou o eneacampeão do ralí Sebastien Loeb, o bicampeão de F1 Fernando Alonso e Lewis Hamilton em seu top-3. O piloto da Mercedes, porém, tem um lugar especial pela fonte de inspiração na luta por diversidade:

– Tenho muito respeito por ele porque não sei como ele faz tanta coisa. Ele tem tanto em seu coração, me sinto plenamente representado. Sem ele, muitas coisas não teriam acontecido. Ele é o líder de tudo isso na indústria automobilística, uma total inspiração para o que você pode fazer, mudar as coisas. E tudo começou só com ele e seu pai, o que é inspirador para mim e meu pai também porque foi assim que começamos. Isso é tudo que eu quero fazer no futuro pela maneira como ele me impacta, como eu o vejo impactar crianças mais jovens ou da minha idade. É uma completa inspiração para quem eu posso ser e como eu poderia moldar o mundo.

Rowe não conseguiu resultados suficientes no GP de Portland, em 3 e 4 de setembro, para garantir o título, mas escreveu uma história iniciada há um século por Charlie Wiggins no automobilismo dos EUA, fortalecida por Willy T. Ribbs há décadas na ponte com a F1 e concretizada pela potência que Sir Lewis Hamilton tem sido dentro e fora das pistas nos últimos anos.

O fator financeiro volta a surgir como um empecilho: sem os 430 mil dólares (R$ 2,2 milhões) da premiação da USF 2000, o futuro de Myles ainda é incerto. Certo é, por outro lado, que ele faz parte de uma geração cuja persistência também dará continuidade à uma história de décadas de resistência e que não vai terminar quando Hamilton se aposentar. Para Rowe, Murilo Rocha, Ugo Ugochukwu, Ernie Francis Jr e tantos outros, cada classificação ao grid de largada já é uma vitória. Mas ainda é pouco.

           Nomes para ficar de olho

  • Murilo Rocha (kart brasileiro);
  • Ugo Ugochukwu (Fórmula 4 britânica);
  • Ernie Francis Jr (IndyLights);
  • Bubba Wallace (NASCAR Cup Series);
  • Wallace Martins (campeão da Fórmula Vee paulista);
  • Jaiden Reyna e Rajah Caruth (NASCAR);
  • McRae Kimathi (ralí);
  • Pascal Wehrlein (Fórmula E);
  • Joshua Bugembe (kart britânico).

Acesse e leia nossos “Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol” 2014201520162017201820192020 e 2021 com os casos de preconceito e discriminação no esporte brasileiro aqui

Fonte: GloboEsporte