Firmin, Williams e Ali: vozes negras silenciadas na luta contra o colonialismo e o racismo

Felipe Antonio Honorato e Guilherme SIlva Pires de Freitas*

Reprodução/Facebook

O objetivo deste texto é fazer uma breve comparação entre três experiências, dentro das ciências sociais e dos esportes, de homens negros que, por meio de sua produção intelectual ou seu destaque como atleta de alto rendimento, se posicionaram publicamente contra o colonialismo ou consequências do pensamento colonial (no caso, o racismo), e, por conta disto, foram sistematicamente silenciados – sendo eles: Joseph-Anténor Firmin, George Washington Williams e Muhammad Ali.

  1. Firmin e Williams

 Arthur de Gobineau, escritor e diplomata francês, publicou, em 1853, dois volumes da obra “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” (CASTRO, 2022). Nela, defendeu a hierarquização das raças: “A ideia de uma desigualdade nata, original, nítida e permanente entre as raças é uma das mais antigas opiniões amplamente defendidas e adotadas no mundo” (CASTRO, 2022, p. 31). Gobineau esteve no Brasil entre 1869 e 1870 e previu para o país um futuro de “total degeneração” (CASTRO, 2022, p. 31) devido a sua miscigenação.

“Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”, tornou-se um “clássico do pensamento racista”, dando a ele um “estatuto científico”, servindo como base para o estabelecimento de políticas racistas e eugenistas (CASTRO, 2022) e influenciando a nascente antropologia.

Em 1850, nasce no Haiti Joseph-Anténor Firmin (CASTRO, 2022). Negro e proveniente de uma antiga colônia francesa, Firmin publica, em 1885, “Da igualdade das raças humanas”, que, desde o título, mostra-se uma clara resposta a obra de Arthur de Gobineau. A obra do haitiano questiona o rigor metodológico, tanto de Gobineau, quanto dos antropólogos que utilizavam experimentos da anatomia e de fisiologia (FIRMIN, 2022) para avalisar a doutrina do racismo científico – “É impossível encontrar em um tratado de antropologia um capítulo no qual a ordem hierárquica das raças humanas seja explicitamente reconhecida” (FIRMIN, 2022, p. 41), ele afirma. Anténor Firmin atenta-se ao fato da ciência ser influenciada pelas “ideias do ambiente” – os interesses políticos, econômicos, a agenda política e a agenda pública “respingam” sobre ela. O autor contesta, também, o paradigma defendido por Gobineau de a desigualdade das raças ser uma ideia tão antiga e bem estabelecida: o haitiano argumenta que, no Império Romano, pessoas de mesma raça podiam se tornar escravizadas, sendo a condição de escravidão determinada por ferramentas jurídicas (FIRMIN, 2022).

Firmin tece crítica dura quanto a discrepância entre o discurso e a prática do europeu frente a ideia da desigualdade das raças, o que não aconteceria, segundo ele, com a escola americana:

“A doutrina antifilosófica e pseudocientífica da desigualdade das raças repousa apenas na ideia da exploração do homem pelo homem. A escola americana tem sido a única consistente consigo mesma, ao apoiar esta doutrina, porque seus adeptos não escondem o interesse capital que tinham em defendê-la. Portanto, devemos prestar-lhe homenagem: tanto os sábios europeus foram tímidos ao emitir suas opiniões com frágeis subentendidos quanto os americanos foram radicais e lógicos, até em seus erros. O europeu, mesmo admitindo a pluralidade de espécies e sua desigualdade comparativa, vai protestar contra a escravidão em magníficos discursos” (FIRMIN, 2022, p. 36)

Tal linha de análise será retomada séculos depois pela acadêmica estadunidense Alice Conklin, que define como um paradoxo “do século passado” (século XIX) o fato de as mais avançadas democracias do mundo ( a grande maioria delas nações da europa ocidental) terem contraído impérios coloniais, por meio da força, exercida através de práticas que iam totalmente contra os preceitos democráticos defendidos por essas próprias nações. Mesmo assim, esses países não enxergavam contradição entre suas democracias e seus métodos em suas colônias, e, em muitas ocasiões, viam o empreendimento colonial como um dever civilizatório (CONKLIN, 1998).

Anténor Firmin se exilou na França entre 1883 e 1885, por causa de sua atividade política em seu país natal. No ano seguinte à sua chegada no país europeu, foi aceito na Société d’Anthropologie de Paris. Segundo Celso Castro (2022, p. 34):

“Foi nesse contexto que Anténor Firmin escreveu e apresentou seu livro sobre a igualdade das raças humanas. A recepção na Société, contudo, não correspondeu às suas expectativas. Ele foi tratado com frieza e distanciamento. A explicação passa pelo fato de Firmin ser negro, por ele ter atacado o dogma da desigualdade racial, base da antropologia então, e ser oriundo de uma ex-colônia francesa que se tornara independente com uma revolução. Juntas, essas condições ameaçavam tanto a concepção racista hegemônica do pensamento científico da época quanto o pressuposto político que estava na base do projeto colonial do Império francês”

Assim, ainda segundo Castro (2022), apesar do pioneirismo, “Da igualdade das raças humanas” foi fadado a um longo silenciamento. Pode-se dizer que processo semelhante aconteceu com George Washington Williams.

Homem negro estadunidense nascido em 1849, Williams, além de ter lutado na Guerra Civil americana, foi missionário da Igreja Batista (KOUTSOUKOS, 2020). Viajou em 1889 para o Congo, com a intenção de investigar as condições do local, pois ouvira rumores de que Leopoldo II empregava um exército particular para explorar a região e que havia abusos (KOUTSOUKOS, 2020). O Estado Livre do Congo, que corresponde a atual República Democrática do Congo, foi uma colônia ultramarina pessoal de Leopoldo II, então rei belga, na África Central entre 1885 e 1905. O extrativismo de borracha e marfim fizeram com que o rei, a partir da década de 1890, obtivesse enormes lucros com sua colônia, ao preço de consequências nefastas para o povo congolês: práticas como a amputação de braços e pernas de nativos eram utilizadas pela Force Publique, uma “polícia privada” formada por soldados mercenários, em sua maioria, africanos, e comandada por oficiais belgas, para forçar um constante aumento da produtividade por parte dos nacionais, que eram obrigados a realizar trabalhos forçados para pagar impostos.

No Estado Livre do Congo, George Washington Williams constatou que o humanitarismo prometido por Leopoldo II nos círculos diplomáticos para convencer as potências internacionais a reconhecerem seu direito sobre o território africano, não passava de uma farsa: ao invés de escolas e hospitais, se deparou com trabalho forçado, estupros, assassinatos e tortura (KOUTSOUKOS, 2020). George fez um minucioso levantamento de todos os abusos que presenciou no Congo e escreveu uma carta a Leopoldo II, onde não só apelou para que o rei parasse com as atrocidades, como também aos belgas e seu governo constitucional para que “se limpassem da imputação dos crimes” cometidos por pessoas à serviço de Sua Majestade (KOUTSOUKOS, 2020). A denúncia do missionário afro-americano, apesar de hoje ser considerada um marco na literatura dos direitos humanos e no jornalismo investigativo, à época foi praticamente ignorada, muito provavelmente pelo fato de George Washington Williams ser negro (KOUTSOUKOS, 2020). A situação só ganharia relevância alguns anos depois, quando Roger Casement, cônsul Britânico no Congo, E.D. Morel, outro britânico, e o casal de missionários ingleses Alice e John Harris, todos brancos e europeus, uniram forças e promoveram uma campanha nos países de língua inglesa contra Leopoldo II (KOUTSOUKOS, 2020): as fotos de jovens congoleses amputados vestidos em roupas brancas feitas pelo casal geraram grande impacto no mundo ocidental. Em 1905 uma comissão internacional foi formada para investigar as denúncias contra o rei belga, e, em 1908, após o pagamento de uma indenização a Leopoldo II, o Estado Livre do Congo se transformou no Congo Belga, passando a ser administrado pelo governo da Bélgica.

  1. Ali

Um dos fenômenos do mundo moderno, o esporte é um ótimo campo de pesquisa para estudos sobre aspectos sociais. Além de ser uma manifestação e fenômeno social, político, cultural e de costumes (BUENO; MARCHI JÚNIOR, 2020, p. 9), esta atividade é capaz de produzir personagens extraordinários através da figura do atleta, que em alguns casos conseguem ir além da esfera esportiva e romper a bolha quando se manifestam sobre temas latentes da sociedade, caso do boxeador Muhammad Ali.

Tido como um dos maiores boxeadores de todos os tempos, ele transcendeu a esfera esportiva. Nascido na cidade americana de Louisville em 1942 com o nome de Cassius Clay, ele começou a praticar boxe ainda na infância. Aos 18 anos de idade conquistou a medalha de ouro olímpica nos Jogos de Roma em 1960 e em seguida se profissionalizou, onde conquistou dezenas de vitórias e cinturões ao longo da carreira.

Ao mesmo tempo em que conquistava vitórias e ganhava fama, aproximou-se de movimentos que lutavam contra a segregação racial nos Estados Unidos ainda na década de 1960. Conheceu Elijah Muhammad, líder do movimento político e religioso Nação do Islã, e Malcom X, ativista afro-americano pelos direitos civis, converteu-se ao islamismo e mudou seu nome para Muhammad Ali, alegando que trocava o nome de escravo por um nome espiritual (ZIRIN, 2016). Por esta atitude foi bastante criticado e ofendido por parte da sociedade que não concordava com seus posicionamentos políticos, raciais e religiosos. Ao lado de outras figuras como Martin Luther King Jr., foi um dos principais ícones no combate ao racismo e segregacionismo nos Estados Unidos.

Um dos momentos mais emblemáticos de sua vida foi quando se colocou contrário a Guerra do Vietnã, recusando uma convocação militar e desafiando o governo americano. Foi punido, impedido de lutar e condenado a cinco anos de prisão, além de ser visto como um “traidor da pátria”. Na ocasião disse o seguinte:

“Why should they ask me to put on a uniform and go 10,000 miles from home and drop bombs and bullets on Brown people in Vietnam while so-called Negro people in Louisville are treated like dogs and denied simple human rights? No I’m not going 10,000 miles from home to help murder and burn another poor nation simply to continue the domination of white slave masters of the darker people the world over. This is the day when such evils must come to an end. I have been warned that to take such a stand would cost me millions of dollars. But I have said it once and I will say it again. The real enemy of my people is here. I will not disgrace my religion, my people or myself by becoming a tool to enslave those who are fighting for their own justice, freedom and equality. If I thought the war was going to bring freedom and equality to 22 million of my people they wouldn’t have to draft me, I’d join tomorrow. I have nothing to lose by standing up for my beliefs. So I’ll go to jail, so what? We’ve been in jail for 400 years.”. (ZIRIN, 2016).

Ali foi uma figura ímpar e de grande importância não só para o esporte, como também para a população negra dos Estados Unidos e no resto do mundo. Sua épica luta contra George Foreman no Zaire em 1974, conhecida como “The Rumble in the Jungle”, o aproximou mais ainda da população africana nos primeiros anos pós-descolonização do continente e seu legado no combate ao racismo é recordado até hoje por diversos atletas negros. Em 1996, já debilitado pelo mal de Parkinson, acendeu a pira olímpica dos Jogos de Atlanta. Foi reverenciado até o fim de sua vida em 2016, quando faleceu aos 74 anos devido a doença degenerativa.

*Felipe Antonio Honorato e Guilherme SIlva Pires de Freitas são doutorandos no Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo.

Acesse e leia nossos “Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol” 2014201520162017201820192020 e 2021 com os casos de preconceito e discriminação no esporte brasileiro aqui

Referências bibliográficas

BUENO, Igor Alexandre Silva; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. Conceitos fundamentais para leitura do campo esportivo pela perspectiva teórica bourdieusiana. Revista Sociologias Plurais, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 8-28, jan. 2020. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/sclplr/article/view/71447>.

CASTRO, Celso. Anténor Firmin e a igualdade das raças humanas. In: CASTRO, Celso (org.). Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.

CONKLIN, Alice L. Colonialism and Human Rights, A Contradiction in Terms? The Case of France and West Africa, 1895-1914. The American Historical Review, v. 103, n. 02, p. 419–442, 1998. Disponível em: < https://doi.org/10.2307/2649774 >. Acesso em: 12 out. 2021.

FIRMIN, Anténor. Hierarquização fictícia das raças humanas. In: CASTRO, Celso (org.). Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.

KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.

ZIRIN, Dave. The Hidden History of Muhammad Ali. Jacobin Magazine, 2016. Disponível em: https://jacobin.com/2016/06/the-hidden-history-of-muhammad-ali/. Acesso em: 05 maio 2023.